"Morreu ontem o meu particular amigo, o mendigo Justino.
Era um homem considerável, sutil e sórdido, com uma barba tão rija como a sua organização cerebral que se estabelecia neste princípio perfeito: a sociedade tem de me dar tudo quanto goza, sem abundância mas também sem o meu trabalho - princípio mais práctico que socialista.
A primeira vez que vi o Justino foi à entrada da velha livraria, ao fundo da rua direita. Tinha um casaco escuro agastado pelo tempo, botas pesadas pela lama e uma barba de profeta cheia de lêndeas pela maneira como era coçada. Era um sábado pela manhã.
- Hoje não há nada.
- Devo notar que há já dois sábados que não me dás nada.
- Não seja importuno, já disse.
- Bem, não te zangues. Notei apenas porque a recusa não foi para sempre. Este cidadão (apontando para mim) vai ceder-me 500 escudos.
- Eu!?
- Está claro. Fica com esta despesinha a mais: 500 escudos aos sábados. É melhor dar a um pobre do que gastar mal o dinheiro em coisas fúteis. Peço, porém, para notares que não sou um chulo, sou um mendigo, esmolo, esmolo há 20 anos. Tens diante de ti um mendigo autêntico.
- E porque não trabalha?
- Porque é inútil.
- Dei-lhe sorrindo uma nota. Justino não agradeceu e quando o vimos pelas costas, o livreiro indignado alvitrou contra o mendigo que com tamanho descaramento arrancava dinheiro à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo era uma curiosa figura perdida em plena cidade.
Mas o mendigo desaparecera, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.
- Deves-me 2 contos de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas botas usadas. Estas estão em petição de miséria.
Fi-lo entrar, forneci-lhe botas e algum dinheiro.
- E se me desses o almoço?
Servi-lhe à mesa, num prato, carne com arroz.
- A mesa e o talher são inutiladades. Não peço senão o que necessito no momento. Pode-se comer perfeitamente sem a mesa e o talher.
Sentou-se no chão e comeu directamente com as mãos. Depois pediu água, limpou as mãos ás calças e saiu.
- Espera ai homem, nem dizes obrigado??
- É inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te faria. E deste por vontade. Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um livro novo. Conheço-te.
- Conheces-me?
- Não te enchas vaidoso. Eu conheço toda a gente. Até para o mês.
Confesso que que o mendigo não me deixou uma impressão agradável. Mas era surpreendente, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de lêndias. Uma vez vi-o sair da assembleia geral da câmara municipal e na mesma noite na primeira fila do teatro.
Certa vez, era já madrugada, atravessava o jardim do coreto, vi uma altercação num banco. Era o Justino a ser agarrado por dois policias.
- Anda seu vagabundo.
- É inútil, não vou.
- Então vais à força.
- É inútil. Sabem o que é este banco para mim? A minha cama há doze anos! Por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto passar muito guarda, muito comissário, muito juiz. Eles vão-se eu fico. Nem tu, nem o juiz nem o delegado serão capazes de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa noite.
Os policias puxaram dos cacetetes. Intervi.
- Deixa. Eles levam-me, eu volto.
Os policias sovaram-no sem dó nem piedade, mas deixaram-no ficar no banco. Só posso imaginar o pior se não estivesse presente.
- Foi inútil, eu disse. Mas eu sou teu amigo.
- Meu amigo?
- Certo. Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta e nunca te menti. Fica certo. Sou o teu melhor amigo.
- E não gostas de ninguém?
- Não é preciso gostar de ninguém para ser amigo. Amigo é o que não sacrifica.
E desde então comecei a sacrificar-me voluntariamente por ele. A correr à policia quando o sabia preso. A procura-lo quando não aparecia há mais de um mês. E desesperado porque não aceitava mais de 100 escudos da minha bolsa. E respondia sempre, inexorável, a cada prova da minha simpatia:
- É inútil, inteiramente inútil.
Durante três anos dei-me com ele sem saber quantos anos tinha ou onde nascera. Nem isso. Apenas consegui saber que fumava aos domingos e ás terças. Embebedava-se ás quintas e ia ao teatro ás sextas e ás segundas. E não faltava ás reuniões gerais da câmara municipal. Nunca tomava banho, pedia pouco e ao menor alarde de genoresidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil.
Teria tido vida melhor? Fora rico? Sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia. Um dia disse-lhe:
- A tua vida é exemplar.
Ele respondeu:
- É um erro servir de exemplo. Vivo assim porque entendo viver assim. Condensei apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam - é inútil trabalhar. O trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me em idéias, sem interesse, no meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie de imposto como qualquer- porque não quero mais que isso.
- E não amas?
- nem a mim mesmo porque é inútil. desses interesses encadeados resolvi tirar a percentagem mínima,e dai o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e sem excessos, despercebido como o invísivel. Que fazes tu? Escreves? tempo perdido meu amigo, com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de percentagem no lugar que quero - o menor, o insignificante - os teatros e tudo quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e sem ter ódios.
- Que inteligência a tua!
- A verdadeira inteligência é a que se limita para evitar dissabores. Tu podes ter contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.
- É prodigioso.
- É um sistema que serias incapaz de praticar porque tu és como todos os outros, ambicioso e sensual.
Quando soube da sua morte corri à morgue a fazer-lhe um enterro digno. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comum - a entrada geral do espectáculo dos vermes.
Sai desolado porque esta criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós, como nós livres dele, longe de nós como ali ao nosso lado.
Sai também com frustação, porque o meu interesse no Justino fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.
Enfim, morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?
Nem uma coisa nem outra, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil."
João do Rio