segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ficção #2 como o mais delicioso e doloroso dos mistérios

...
- Julguei que não vinhas.
- Vim porque te quero demonstrar que estavas enganada.
- E eu a pensar que tinhas vindo porque te apetecia ver-me.
- Estive quase para me enfiar dentro de um cinema para não te ver hoje.
- Porque?
- porque tinha medo que tivesses razão.

- E como é que me vais demonstrar que estou enganada?
- Simples. Com o tempo.
Aproximou-se e pegou-me na mão. Acariciou-me a palma em silêncio. A mão tremia-me. Surpreendi-me a mim mesmo a desenhar mentalmente o contorno do seu corpo. Desejava tocá-la e sentir a pulsação a arder-lhe debaixo da pele. Os nossos olhares tinham-se encontrado e tive a certeza que ela sabia o que eu estava a pensar.
- É estranho.
- O quê?
- Esta facilidade de falar à vontade e sem reservas com um estranho.
- Talvez porque um estranho nos vê como somos, e não como quer acreditar que somos.
- E como me vês tu a mim?
- Como um mistério
- Porquê um mistério?
- Fico inquieto com um mistério. Um mistério esconde qualquer coisa.
- Se calhar decepcionas-te ao ver o que lá há escondido.
- Se calhar surpreendo-me...

Invadiu-me um desejo quase doloroso de a beijar. Uma ânsia sofucante. Ela leu-me o olhar.
- Está a ficar tarde. Tenho que ir.
- Sim.
Uma parte de mim desejava ficar, perder-se naquela estranha intimidade.
Despedi-me dela agradecendo-lhe o serão. Ela aproximou-se e beijou-me delicadamente a face. Olhámo-nos em silêncio e num assomo de coragem mal roçando os lábios beijei-a levemente. Mal os nossos lábios se tocaram, afastou-se e baixou o olhar.

- Até amanhã.
- Até amanhã.
Virei costas e dirigi-me ao carro em passo acelarado. O ar gélido roçava-me o rosto mas não apagava o calor do rosto dela, nem o seu cheiro. Conservei o sabor dos seus lábios e do seu hálito sobre a pele por ruas repletas de gente apressada sem rosto. E de repente ocorreu-me.. o nome! Ela não o disse! O nome..

2 comentários:

XR disse...

Ficção deliciosa na mais longa das noites do ano ... noite de solstício, de renovação, onde há deuses (e deusas) à solta ...

Ficção dolorosa na mais longa das noites do ano, quando a fria madrugada tarda, quando se sabe que a manhã demorará a chegar ...

E pela manhã, quando do manto de névoa nocturna não restar mais do que uma leve filigrana no ar, será que ainda lá estará um sapato de cristal à espera de ser encontrado ?

XR disse...

... editaste o final ...
Uma fantasia pode ter o nome que quiseres, és tu quem escolhe a entoação a dar ...

Bjo