sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O que as mulheres querem

As mulheres não querem ser definidas, antes compreendidas. As mulheres querem uma piada qua as faça rir bonitas, não uma piada que as faça rir por rir. As mulheres não querem que os homens perguntem permanentemente o que é que querem. As mulheres escolhem inúmeras vezes a roupa não porque são instáveis ou porque tem dificuldades de decisão, mas para verem sequencialmente o seu corpo - as roupas são o espelho. As mulheres desejam que os homens adivinhem os seus desejos, que lhes digam palavras rudes com ternura, que lhes digam palavras ternurentas com violência, que a paixão seja inventada (porque quando uma mulher tem prazer sai do seu corpo). As mulheres querem que os homens fechem a porta à noite para elas a abrirem de manhã. Querem ter um filho para não se matarem de amor por uma única pessoa. As mulheres querem ter a esperança de não serem elas, pelo menos uma vez por mês. Elas querem falar com as amigas (ou amigos) o que o seu homem não sabe ouvir. Querem que o seu homem entenda que ele nem sempre é o seu assunto preferido. Querem dançar para os outros homens para chamar o seu para perto de si. As mulheres querem ser ressarcidas dos seus erros, querem que acreditem nelas quando mentem, que duvidem delas quando dizem a verdade. As mulheres querem ser perfeitas dentro das suas imperfeições. Querem ser olhadas nos olhos, na menina dos olhos. Querem viver o que não entendem. Querem dizer o que sofrem para não sofrerem do mesmo. Querem ter sonhos eróticos para substituir as lembranças passadas. As mulheres, ao andarem, querem sentir olhos nas costas, não assobios ou piropos. As mulheres querem descansar num colo. Querem que um homem as ajude a enterrar o passado e, ao mesmo tempo, a desenterrar o futuro. Querem ser surpreendidas com um beijo nos ombros. Querem descobrir, nem tarde nem cedo demais, o que a vida quer delas. Querem que os homens fechem as antigas relações e a pasta de dentes. As mulheres não querem que os homens falem por elas, tal como eu aqui tentei fazer.

Ele

Encontrar

Foi impossível encontrarmo-nos. Há tanta gente. O mundo é tão grande. Os nossos caminhos são tão difíceis. Tudo está contra nós. Foi difícil encontrarmo-nos. Mas encontrámo-nos. Contra as vezes em que estivemos longe de nos conhecermos. E contra as vezes em que nos cruzámos sem nos vermos. O que interessa isso agora? Contra todos os contras, encontrámo-nos.
     É por ser tão contrário a todas as possibilidades, que é difícil acreditar num encontro como o nosso. Não contam os encontros em que as pessoas se apresentam umas ás outras. Nem os combinados. Nem os previsíveis. Isso é que era bom. Só contam aqueles em que duas pessoas se encontram, sem nada terem feito para se encontrarem. Contra tudo o que seria de esperar. Isso sim. Porque nunca acontece.
     Foi o que nos aconteceu. O meu casaco ficou preso à tua camisola. A culpa não foi nossa. Foi da electricidade estática. No meio de uma multidão. Eu não sabia de nada. Quem tu eras. O que era aquilo. E tu também não. O meu casaco não conhecia a tua camisola de lado nenhum. Estavamos presos um ao outro. A morrer de vergonha. Não consegui soltar o casaco. Nem tu a camisola. Ólhamos um para o outro. Cada um a puxar para seu lado. Só havia uma solução: a siamesa. Rimo-nos.
     Foi a primeira vez que nos rimos. Era a primeira vez que nos tinhamos visto. Estávamos tão atrapalhados que nem sequer demos conta que aqueles momentos foram, para todos os efeitos, o nosso primeiro encontro. No sentido mais puro da palavra (Um dia, quando alguém nos perguntar como é que nos conhecemos, temos de arranjar uma grande mentira).
     Lá conseguimos separa-nos, graças a Deus. A tua camisola virou costas ao meu casaco e cada um foi à sua vida. A multidão é enorme. Não se vê ninguém. O tempo passa, afastando as pessoas ainda mais. E como estou de relações cortadas com o meu casaco, nem com os meus botões posso falar.
     Mas depois encontramo-nos outra vez. outra vez, como se pela primeira vez. tu vens dum lado e eu doutro, tu da tua vida e eu da minha. É tarde de mais para nos escondermos. É impossível fugir. lemos os pensamentos um do outro e os nossos olhos riem-se. Pensamos no casaco e na camisola que se agarraram como se fossem velhos amigos, com toda a cumplicidade da lã virgem.
     Afasto-me para te deixar passar, recolhendo o casaco, implorando-lhe entre dentes que não se atire outra vez à tua camisola. levantas a mão, como se me fosses bater (pensas sem dúvida que culpo a tua camisola por tudo o que aconteceu). Mas não falamos. Seguimos mais uma vez, cada um pelo seu caminho. Os nossos dois desencontros transformaram-se, de repente, em encontros de verdade. Apetece-me ir atrás de ti. Tenho a sensação absurda que somos amigos há muito tempo e que passaste por mim sem me falar. E dou comigo, sem dar por isso a procurar-te entre as pessoas, sem saber bem porquê. Até sentir no coração uma pequena esperança, que nasce dentro de mim sem que eu seja tido ou achado: a esperança, muito pequenina, de encontrar-te mais uma vez. Um dia. Noutro sítio. Sabia, nesse momento, que, se te visse, havia de me lembrar.
     E depois - pela minha saúde - encontrámo-nos pela terceira vez. Contra tudo. É demais. Redemo-nos. Rimo-nos e parámos, um diante do outro, obrigados a reconhecer a derrota. Não fugimos. Seria desrespeitoso para com as forças do destino. falamos. falamos das coincidências que nos perseguiram desde o momento em que nos vimos. O melhor é deixarmos de resistir. falamos.
     Derrepente, achamos que fomos cosmicamente escolhidos para nos conhecermos. Fico com a tua morada. Somos quase vizinhos. Despedimo-nos depressa, mais depressa do que nos encontrámos. Já não somos desconhecidos. Para nos podermos encontrar, nunca mais estamos sujeitos à força das estrelas do céu, nem à electricidade estática.
     Mas quantas pessoas se encontram só por encontrar? Na multidão do mundo, onde cada um se guarda nas pessoas que ama, vivendo entre a pequena multidão de quem conhece, é quase impossível duas pessoas encontrarem-se de verdade. São encontros que acontecem contra todos os outros encontros. A começar pelas próprias pessoas que se encontram, que não querem sequer encontrar-se. Encontram-se em estado de choque.
     Encontrar é, ao mesmo tempo, juntar e opor, abraçar e empurrar. As contrariedades são essenciais - à curiosidade, à atracção ao desejo. É através delas, as diferenças, que se estabelece a distância entre um e outro, sem a qual não pode haver amor. Quem ama alguém ama por quem é. Eu amo alguém que me está sempre a lembrar quem ela é - e não a mim.
    O amor não é um fim nem um meio - é uma condição. É por isso que o verbo amar é o que mais se parece com encontrar.

ENCONTRAR: verbo transitivo (de em + contra). Do latim contra; em oposição, em inimizade com;em luta com (...) mas também exprime contiguidade, proximidade; junto de; em contacto com (...) Sentido: ir de encontro a; esbarrar, topar; chocar; dar de cara com; deparar casualmente.

Miguel Esteves Cardoso
    

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Beba um copo pela sua saúde

Cada vez que ouço falar do problema do álcool, apetece-me logo beber um copo de vinho. Acho até uma grande leviandade falar no álcool como um problema - muito mais grave que o problema do álcool, por exemplo, é o problema da seca.

Na verdade, o problema do álcool não é problema mas solução dos problemas do mundo. Se não fosse proibido beber álcool nos paises muçulmanos, acabavam-se logo os homens-bomba - nenhum iria sóbrio e em vez das bananas de dinamite levariam bananas da venezuela ou da Madeira presas à cintura. O vinho tem mais efeitos pacíficos que os chás nas cimeiras de paz entre árabes e israelitas.

Acabava logo a guerra no Afganistão se em vez de papoilas investissem na plantação de vinha - lá está o problema dos muçulmanos não poderem ingerir álcool. Seriam menos sisudos e já saberiam apreciar como deve de ser, uma boa obra de arte tal como um Gustave Courbert e a sua "origem do mundo" ou a colecção Berardo no CCB.

E já repararam que as drogas duras são originárias de paises onde não há vinho decente? Já mais se inventaria o ópio em Borba ou a heroina no Alto Douro.
E em vez de ópio e drogas duras, estes paises poderiam dedicar-se à exportação de vinho, sabe-se lá com que qualidades exóticas, enriquecendo ainda mais as cartas de vinho dos restaurantes mais luxuosos do mundo.
As drogas pura e simplesmente acabariam, tal qual como a pequena criminalidade e a sobrelotação das cadeias aliviando a despesa do Estado.

E já não há pachorra para aquelas almas que demonizam o álcool. Tudo faz mal quando se exagera, é logico. Pode-se morrer com ovos cozidos, antibióticos, água, papel de máquina, pistácios (se pesquisarem no google vão encontrar de certeza casos de pessoas que morreram de excesso de pistácios). Além de que o vinho e a cerveja tem propriedades benéficas cientificamente provadas. O que é preciso é haver campanhas não para deixar o álcool mas como saber geri-lo. O problema do álcoolismo é o mesmo das finanças: falta de gestão. O dever do Estado não é proibir, mas informar e instruir. Nos paises onde o álcool é proibido, as pessoas bebem menos mas embebedam-se mais. E, no entanto, não são felizes. Andam aos tropeções e caem na rua. Bebem depressa e sem prazer. Desatam à pancada. Enfim, a bebedeira só devia entristecer porque se assinála o fim de uma sequência de copos, e não de um naipe de cartas.

O vinho continua a ser a resposta e uma das grandes invenções da humanidade. Beba um copo, pela sua saúde (mas com moderação)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Há vidas assim, que nos esmurram a consciência e o pensar corta-nos a respiração

"Morreu ontem o meu particular amigo, o mendigo Justino.
Era um homem considerável, sutil e sórdido, com uma barba tão rija como a sua organização cerebral que se estabelecia neste princípio perfeito: a sociedade tem de me dar tudo quanto goza, sem abundância mas também sem o meu trabalho - princípio mais práctico que socialista.
A primeira vez que vi o Justino foi à entrada da velha livraria, ao fundo da rua direita. Tinha um casaco escuro agastado pelo tempo, botas pesadas pela lama e uma barba de profeta cheia de lêndeas pela maneira como era coçada. Era um sábado pela manhã.
- Hoje não há nada.
- Devo notar que há já dois sábados que não me dás nada.
- Não seja importuno, já disse.
- Bem, não te zangues. Notei apenas porque a recusa não foi para sempre. Este cidadão (apontando para mim) vai ceder-me 500 escudos.
- Eu!?
- Está claro. Fica com esta despesinha a mais: 500 escudos aos sábados. É melhor dar a um pobre do que gastar mal o dinheiro em coisas fúteis. Peço, porém, para notares que não sou um chulo, sou um mendigo, esmolo, esmolo há 20 anos. Tens diante de ti um mendigo autêntico.
- E porque não trabalha?
- Porque é inútil.
- Dei-lhe sorrindo uma nota. Justino não agradeceu e quando o vimos pelas costas, o livreiro indignado alvitrou contra o mendigo que com tamanho descaramento arrancava dinheiro à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo era uma curiosa figura perdida em plena cidade.
Mas o mendigo desaparecera, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.
- Deves-me 2 contos de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas botas usadas. Estas estão em petição de miséria.
Fi-lo entrar, forneci-lhe botas e algum dinheiro.
- E se me desses o almoço?
Servi-lhe à mesa, num prato, carne com arroz.
- A mesa e o talher são inutiladades. Não peço senão o que necessito no momento. Pode-se comer perfeitamente sem a mesa e o talher.
Sentou-se no chão e comeu directamente com as mãos. Depois pediu água, limpou as mãos ás calças e saiu.
- Espera ai homem, nem dizes obrigado??
- É inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te faria. E deste por vontade. Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um livro novo. Conheço-te.
- Conheces-me?
- Não te enchas vaidoso. Eu conheço toda a gente. Até para o mês.
Confesso que que o mendigo não me deixou uma impressão agradável. Mas era surpreendente, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de lêndias. Uma vez vi-o sair da assembleia geral da câmara municipal e na mesma noite na primeira fila do teatro.
Certa vez, era já madrugada, atravessava o jardim do coreto, vi uma altercação num banco. Era o Justino a ser agarrado por dois policias.
- Anda seu vagabundo.
- É inútil, não vou.
- Então vais à força.
- É inútil. Sabem o que é este banco para mim? A minha cama há doze anos! Por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto passar muito guarda, muito comissário, muito juiz. Eles vão-se eu fico. Nem tu, nem o juiz nem o delegado serão capazes de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa noite.
Os policias puxaram dos cacetetes. Intervi.
- Deixa. Eles levam-me, eu volto.
Os policias sovaram-no sem dó nem piedade, mas deixaram-no ficar no banco. Só posso imaginar o pior se não estivesse presente.
- Foi inútil, eu disse. Mas eu sou teu amigo.
- Meu amigo?
- Certo. Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta e nunca te menti. Fica certo. Sou o teu melhor amigo.
- E não gostas de ninguém?
- Não é preciso gostar de ninguém para ser amigo. Amigo é o que não sacrifica.
E desde então comecei a sacrificar-me voluntariamente por ele. A correr à policia quando o sabia preso. A procura-lo quando não aparecia há mais de um mês. E desesperado porque não aceitava mais de 100 escudos da minha bolsa. E respondia sempre, inexorável, a cada prova da minha simpatia:
- É inútil, inteiramente inútil.
Durante três anos dei-me com ele sem saber quantos anos tinha ou onde nascera. Nem isso. Apenas consegui saber que fumava aos domingos e ás terças. Embebedava-se ás quintas e ia ao teatro ás sextas e ás segundas. E não faltava ás reuniões gerais da câmara municipal. Nunca tomava banho, pedia pouco e ao menor alarde de genoresidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil.
Teria tido vida melhor? Fora rico? Sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia. Um dia disse-lhe:
- A tua vida é exemplar.
Ele respondeu:
- É um erro servir de exemplo. Vivo assim porque entendo viver assim. Condensei apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam - é inútil trabalhar. O trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me em idéias, sem interesse, no meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie de imposto como qualquer- porque não quero mais que isso.
- E não amas?
- nem a mim mesmo porque é inútil. desses interesses encadeados resolvi tirar a percentagem mínima,e dai o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e sem excessos, despercebido como o invísivel. Que fazes tu? Escreves? tempo perdido meu amigo, com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de percentagem no lugar que quero - o menor, o insignificante - os teatros e tudo quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e sem ter ódios.
- Que inteligência a tua!
- A verdadeira inteligência é a que se limita para evitar dissabores. Tu podes ter contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.
- É prodigioso.
- É um sistema que serias incapaz de praticar porque tu és como todos os outros, ambicioso e sensual.

Quando soube da sua morte corri à morgue a fazer-lhe um enterro digno. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comum - a entrada geral do espectáculo dos vermes.
Sai desolado porque esta criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós, como nós livres dele, longe de nós como ali ao nosso lado.
Sai também com frustação, porque o meu interesse no Justino fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.
Enfim, morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?
Nem uma coisa nem outra, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil."

João do Rio