terça-feira, 6 de abril de 2010

A vida é demasiado curta para perdermos tempo a entediarmo-nos

"A felicidade tem mau marketing porque exige coragem. Para começar, a coragem de aguentar os dichotes desdenhosos dos que desistem dela. Um rapaz que aos 65 anos vai no quarto casamento, dizia-me há dias que está farto de ser olhado com paternalismo por homens acomodados na rotina das pantufas conjugais e dos engates ocasionais. Diz este meu amigo que não entende como conseguem as pessoas dormir com alguém que já não desejam e desejar alguém com quem não podem dormir. Talvez não sejam capazes de desejar sem interdições, o que significa que o objecto real do seu desejo é o proibido. É difícil estimarmos aquilo que temos. Lembro-me sempre da história daquele homem que, sendo encantador com a noiva durante os seis anos em que noivaram, se tornou frio e bruto ainda na lua-de-mel. Quando a mulher lhe perguntou a causa daquela mudança, retorquiu: "Ninguém corre atrás de um comboio quando já vai lá dentro." Uma história de outros tempos, como pensa a própria protagonista, hoje já transformada em comboio vazio por morte do ingrato passageiro? Nem por isso. Raros cavalheiros se atrevem hoje a expressar o que lhes vai na alma com a eloquência deste falecido apreciador de comboios em fuga - tornaram-se mais cuidadosos no falar, desde que os comboios se transformaram em TGVs supersónicos. Uma palavra a mais pode provocar uma sacudidela a alta velocidade, capaz até de os catapultar para o desabrigo da linha férrea, onde não se servem refeições quentes nem programas de televisão. Há dias, queixava-se-me um recém-divorciado, em voz de desespero: "Mulheres interessantes até há, mas todas tão incapazes de estrelar um ovo como eu!" Citei-lhe as frases finais do fabuloso "Annie Hall", de Woody Allen: "- Doutor, estou preocupado, o meu irmão julga que é uma galinha. - Então traga-mo, para eu o tratar. - Eu trazia, mas preciso dos ovos." Uma citação propositadamente deslocada, porque me deprime menos pensar que todos nós precisamos de uma qualquer espécie de ovos ainda por inventar (a Clarice Lispector percebia muito disso) do que pensar que os seres com quem contraceno andam mesmo e só à procura de ovos bem estrelados.

Na maioria dos casos, a iniciativa do divórcio parte das mulheres. Por causa dos ovos estrelados, ou dos ovos que cresceram e se tornaram filhos. Elas, em caso de necessidade, ainda sabem partir ovos - e entrar ou sair de comboios em andamento, mesmo com as mãos cheias de sacos de supermercado. E são elas quem fica com os filhos. Quando as mulheres começam a ameaçar separar-se, os homens clamam que não aguentam ficar longe dos filhos. As mulheres espantam-se, porque nunca deram pela força do amor paternal: era cala-te puto que o pai quer ver o telejornal, estás aqui estás a levar uma lamparina - e, de repente, a criança ignorada torna-se o centro do mundo. Este discurso tem o condão de comover as outras mulheres que querem ficar perto destes pais extremosos, e de quem eles não querem mais do que umas cópulas revigorantes. Com tanto sentimento, não sei como sobrevive a prostituição. Deve estar reduzida àqueles de quem nunca ninguém quis ter um filho. Pobres trabalhadoras.

Um homem que se case muitas vezes, e de sua livre iniciativa (isto é, sem ter sido empurrado do comboio por uma mulher farta de o aturar) é visto como um ingénuo: escolhe a chatice da mudança e da despesa constante, em vez do regalo do lar e o consolo dos casos por fora. Para quê mudar, se nada é eterno e tudo se torna hábito? Precisamente por isso, diz o tal meu amigo que insiste em casar-se: "A vida é demasiado curta para perdermos tempo a entediarmo-nos. Eu gosto de partilhar tudo. Acho que se aprende mais a dois do que sozinho, do mesmo modo como se aprende mais tendo amigos do que não tendo. É uma tristeza viver com uma pessoa com a qual já não se partilha tudo." Vidas cinzentas. Hipócritas, mas isso é o menos - o pior é a tristeza, porque chega um dia em que já não há crianças barulhentas em casa nem sobra charme para engatar a vizinha. E morre-se sem ter mudado nada. Morre-se sem ter experimentado o trabalho infinito da felicidade. Este meu amigo não vai morrer assim. Será lembrado com alegria pelos três filhos e pelas várias mulheres que soube amar. O amor não se perde, apenas muda de natureza. Desde que saibamos escutá-lo e acarinhá-lo. Há é pouca gente para dar por isso."

Texto publicado na edição da Única de 20 de Março de 2010, por Inês Pedrosa.