quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Anjos de Port Au Prince

O terramoto que abalou a igreja de deus (Christchurch), na Nova Zelândia, trouxe-me à memória estes anjos (fantasmas) de uma terra (fantasma) esquecida.


Num promontório de Port-au-Prince, as crianças deficientes do orfanato Village Espoir olhavam serenamente a cidade em ruínas.
Cordilheiras de entulho e cadáveres a arder, avessos obscenos, plasmas orgânicos e minerais, o humano e o que lhe pertence, naturalmente fundidos.
Os mortos ainda tinham os braços levantados, os olhos abertos. Imobilizados no preciso momento em que o ímpeto vital lhes foi mais intenso. O momento decisivo.
A cidade estava aos pedaços e as pessoas vagueavam em terror sobre os escombros, mas não em qualquer zona. Algumas permaneciam inexplicavelmente vazias. Tornaram-se de súbito inóspitas, mesmo para quem sempre lá viveu.
É curioso como ao se envolverem de morte, as pedras se tornaram vivas como monstros. Era preciso coragem para as olhar de frente, e muitos não a tinham. As ilusões de óptica são traiçoeiras. O que parece um ferro torcido pode ser o braço de um irmão. O pedaço de um pneu rasgado pode ser a cabeça de um filho. Nunca se sabe o que se vai encontrar por baixo de uma placa de betão, no interior de um carro esmagado. Ou quem.
A certas zonas não se ia. Era melhor deixá-las no seu zumbido, o seu monólogo, os seus sinistros enredos telúricos. Um ser humano não tinha nada a fazer ali.
Subi ao ponto mais alto da cidade, de onde se via tudo. No orfanato Village Espoir um grupo de crianças fora colocado à parte. Eram uns 20 meninos e meninas em cadeiras de rodas, dispostos num terreno ao ar livre. Estavam ao sol, abrasador, e as moscas atacavam os que tinham mais dificuldades em se mover. Uns eram paraplégicos, outros vítimas de poliomielite, tinham os membros paralisados ou deformidades no corpo. Uns eram esqueléticos, outros faziam movimentos espasmódicos, mas nenhum me pareceu estar triste.
Olhavam a cidade destruída como se fosse um mundo que não era o seu. Como se o espectáculo da tragédia absoluta fosse para eles até motivo de algum divertimento. Talvez o alheamento ou a falta de discernimento se devessem às suas doenças, mas a verdade é que os meninos deficientes da Village Espoir sorriam. Os seus olhos negros e remelentos pareciam dizer: Já cá estávamos. Isto para nós não é nada.
A sua incapacidade e dependência não os levava a estarem aflitos. Tal como na noite cerrada um cego é o único que vê, eles pareciam encontrar na catástrofe o seu elemento. Ao contrário do que aconteceu com as outras pessoas, na sua vida nada mudou, excepto a própria diferença.
Um artista que conheci em Port-au-Prince disse-me que, depois do terramoto, as pessoas passaram a olhar-se de forma diferente. Pela sua desmesura, o sismo foi sentido como um destino para todos, e a sobrevivência como um milagre.
Ter sido poupado equivalia a uma insuportável cumplicidade com o monstro, e talvez por isso tantos testemunhos falem da felicidade, não de ter escapado, mas de ter renascido. É essa a forma como as pessoas se olham – como se nunca se tivessem olhado.
A sociedade haitiana é violenta, e não ficou melhor depois do terramoto, mas agora os homens fitam-se com um certo assombro. Um respeito que as circunstâncias impõem.
Cada ser humano é um prodígio. E é à luz desta lógica nova que não faz diferença nenhuma ser-se normal ou uma criança numa cadeira de rodas.
Agora, como nunca, naquele monte de onde se avista a cidade em escombros, os meninos deficientes do Haiti são anjos como todos os outros.

In PÚBLICO, por Paulo Moura.

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