sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Sala mágica

Moro numa cidade pequena, com um anfiteatro grande para o número de cinéfilos. E como são poucos, só há três sessões por semana, às quintas, sábados e domingos. Mas gosto deste anfiteatro. É um salão antigo, de tecto alto e cadeirões espaçosos em pele. Cheira a emoção, riso e angústia. O preço do bilhete é pouco mais do que o preço do aluguer de uma cópia de video-clube. E como se não bastasse a excelente selecção dos filmes, o preço, ainda há um senhor (estrangeiro) que se dá ao trabalho de apresentar pessoalmente o filme. O único senão é o atraso com que os filmes nos chegam, como foi o caso deste. Mas vale a pena esperar.

Depois é só recostar no cadeirão e libertar as emoções. E no fim não me quero ir embora. Quero ver mais. Quero sentir aquilo outra vez. Quero perceber aquela magia que me fez voltar uns anos atrás. Às férias na cidade maravilhosa. Cidade dos anjos e dos demónios. Onde estive quase a ir preso, na primeira noite, ás 5 da manhã, nú, com um polícia a segurar as minhas calças e as dos meus amigos, depois de termos dado um mergulho no mar. Onde andei sozinho, de madrugada no calçadão. Onde dancei no meio da rua, numa espécie de S. João, onde se viam pessoas e coisas estranhissímas. Onde estive numa favela, rodeado de crianças sujas e esfomeadas. Dentro de uma cozinha a servir-me directamente de uma panela. Guiado por um taxista que não quis receber a "corrida". No meio de uma multidão, onde a vida vale tanto como um par de ténis.

E é impressionante reparar como essa equação de vida faz toda a diferença. A reacção química que realça o sabor. O sabor de estar vivo! Viver com despreendimento. O dia à dia. O sol. O mar. O sexo. A comida. A dança. A música.

Podem roubar tudo, mas nunca lhes vão roubar o prazer de se estar vivo.
Este filme fez-me voltar lá

Sem ser um grande filme, é um filme onde a luta maior não é exterior, mas bem dentro de nós, até onde a violência nos acaba por corromper.

5 comentários:

Precis Almana disse...

Ai, pá, achei o filme tão (gratuitamente) violento... Toda a beleza da cidade - que eu também conheço - não é nada retratada aqui. Mas respeito que tenhas sido transportado lá, claro. Cada um sente o que sente e mais nada :-)
A frase que dizes sobre os ténis traduz completamente aquela sociedade. Não sei se em todos os estados brasileiros, mas sem dúvida no do RJ.

Paulo disse...

Mas essa violência gratuita é real! Está lá!E o contraste entre a beleza da cidade e os nossos demónios é gritante e também está lá! O filme fez-me voltar ao Rio, onde estive em contacto com essa beleza, não só da cidade como das pessoas, mas também com os demónios. As crianças descalças e sujas que nos matam sem pestanejar e os policias corruptos.

O mais fantástico, é que o medo que eu sentia na rua, dissipava-se ao conviver com aquelas pessoas simples e alegres por estarem vivas, apesar de toda a pobreza.

Das poucas viagens que fiz, esta foi a que me mais me marcou sem dúvida.

Bluebluesky disse...

Gostei deste post. Primeiro porque também sou de um sítio onde o auditório do cinema é demasiado grande para os cinéfilos ;) e depois porque gostei especialmente da reflexão que fazes acerca das memórias evocadas pelo filme. É que um filme, tal como uma música, uma fotogrfia, etc, são sempre mais do que apenas isso e são sempre diferentes para cada um de nós, não é? :)

Precis Almana disse...

Claro que percebo o que dizes, fui lá várias vezes.
Mas, tal como no erotismo vs. pornografia, prefiro o sugerido ao explícito. Neste último caso, por razões opostas, claro. Foi por isso que não gostei de ver determinadas cenas - e de as ter considerado desnecessárias (gratuitidade nesse sentido, mas sei que a cidade do RJ está cheia de violência gratuita). Penso que o filme conseguiria o mesmo sem mostrar tudo tal qual.
Mas... que seria da graça do mundo sem opiniões diversas?
E assim não teríamos trocado ideias ;-)
Bom resto de domingo.

Precis Almana disse...

Ah, e sim, o medo é primo ou irmão do desconhecido. Ao conheceres o ambiente, o medo também diminui.